quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

As modas do grain-free, gluten-free, premium, vegan, blablabla

Primeiro post do ano 2017! WhooHoooo!

Vamos começar o ano da melhor maneira: deitando abaixo mitos e lendas sobre nutrição animal que já me têm andado a fazer algumas comichões (e sei que a alguns leitores também).

Várias modas têm surgido nos últimos anos em relação a novas formas de alimentar os nossos animais: rações premium, rações sem cereais, rações sem glúten, rações sem proteína animal, rações naturais/orgânicas... enfim, é tanta esquesitice que já faltava aqui um artigo a esclarecer esta baralhada toda.

Primeiro de tudo, e porque é importante perceber-mos do que é que estamos para aqui a falar, vamos esclarecer conceitos:
  • Rações sem glúten (gluten free): glúten é uma proteína produzida por alguns cereais como o trigo, cevada, centeio... Mas nem todos os cereais produzem glúten, por isso, estas rações podem conter cereais não produtores desta proteína;
  • Rações sem cereais (grain free): não contêm quaisquer tipos de cereais (e, por isso, também não têm glúten) mas podem conter, e contêm, fontes de carbo-hidratos, como vegetais e frutas;
  • Rações vegan: não contêm produtos nem sub-produtos de origem animal;
  • Rações premium super premium: não existe um significado oficial para estas rações nem uma fiscalização que assegure o cumprimento do que prometem, mas o que dizem é que têm uma maior digestibilidade, ou seja, dá-se menos comida ao animal do que as rações normais e ele absorve mais facilmente os nutrientes nela contidos.
  • Rações hipoalergénicas: (supostamente) não causam alergias. Possuem ingredientes diferentes dos que se encontram nas rações normais, geralmente ingredientes que o animal nunca tenha entrado em contacto (pato, veado, coelho, cavalo, canguru... sim, canguru!);
  • Rações hidrolizadas: consideradas também hipoalergénicas, no sentido em que a proteína passa por um processo onde os seus componentes são divididos em partículas tão minúsculas que o sistema imunitário não as consegue detectar e, por isso, não criam uma reacção alérgica.
Ai 'xôtora que confusão! Então e o que é que eu dou ao bicho? 
As pessoas gostam tanto de complicar, e as empresas de rações valem-se disso. 
A maior parte dos animais vive bem e feliz com uma ração normal, de preferência vendida em lojas da especialidade ou mesmo em clínicas (as de supermercado não costumam ser grande coisa...).

Ah e tal, mas eu sou vegetarian@ e quero que o meu animal também seja.
Forçar um animal de estimação a ser vegetariano/vegan (especialmente gatos), é a mesma coisa que forçar um elefante a comer gazelas. Não é natural. Os gatos são carnívoros obrigatórios e os cães, bem, os cães é uma história um pouco diferente. Por ridículo que pareça não há um consenso em relação ao que é o cão (é carnívoro, é omnívoro?). Estudos mais recentes indicam que o cão é primariamente carnívoro, mas com uma capacidade genética evolutiva de digerir carbo-hidratos. Tudo isto para dizer que os cães não foram feitos para comer primariamente erva (se bem que alguns parecem adorar, mas isso fica para outra história).

Então isso quer dizer que devemos comprar alimentos só com produtos à base de carne e sem cereais?
A maior parte das rações comerciais disponíveis possuem vários cereais incorporados (excepto as grain free), principalmente porque é mais barato do que fazer uma ração 100% à base de proteína animal (nem haveria donos dispostos a pagar tal quantia). O ideal é, como se passa a vida a dizer nas consultas, olhar para a lista de ingredientes dos rótulos das rações e ver quais os primeiros ingredientes (o primeiro ingrediente é o que se encontra em maior quantidade e por aí fora). Convém que os primeiros ingredientes sejam à base de carne ou seus sub-produtos.

Sub-produtos? Ai ki'orrore dra! Isso é coisa de pobre!
Meus queridos, sabem ao menos o que são sub-produtos? Ultimamente têm vindo a surgir uns mitos que fazem o consumidor comum pensar que sub-produtos de carne são componentes de baixa qualidade, cancerígenos, radioactivos forjados numa central nuclear e que vão causar o fim do mundo. Nada disso, sub-produtos são simplesmente partes do animal que não são consumidas pelo Homem, muitas vezes apenas por questões culturais (comeria fígado de galinha? E pénis de porco?). Claro que o problema aqui não são os sub-produtos em si, mas sim o facto de que o fabricante deveria descrever no rótulo de ingredientes quais os sub-produtos, e isso raramente é feito, deixando então o consumidor a pensar sempre o pior ("devem ser órgãos cheios de tuberculose, fígados com parasitas rastejantes e animais a morrer de infecções sistémicas!!"). Não nos esqueçamos ainda que muitos sub-produtos animais (aqueles que nem servem para fazer ração) são usados como fertilizantes na agricultura - nem os vegetarianos estão a salvo!

Só não percebi uma coisa dra., porque é que se adicionam legumes à ração dos cães se eles não precisam de fontes de carbo-hidratos na sua dieta?
Excelente pergunta! Vejo que está com atenção... Para além do factor económico, já anteriormente falado, há muita gente que vem com a conversa do "Ah e tal, os lobos no seu habitat, quando caçam as suas presas herbívoras, também comem o conteúdo dos seus estômagos, que tem carbo-hidratos e como os cães vêm dos lobos é tudo a mesma coisa!". Errado!
Para além de não se dever comparar cães e lobos (afinal de contas nós também viemos dos macacos e não passamos a vida a comer bananas e amendoins), a teoria de que os lobos comem os estômagos dos herbívoros é falsa e para provar proponho duas coisas: ler este excerto em inglês de um livro sobre lobos, ou ver documentários sobre esta espécie.

Oh ´xôtora, agora mudando de assunto, eu tenho intolerância ao glúten e acho que o meu animal também tem, acha que beneficiaria de uma dieta sem glúten?
Provavelmente não. Ao contrário de nós, seres fracos e inferiores, os animais não têm essas mariquices de intolerância ao glúten. Podem sim, desenvolver alergias a determinados ingredientes, quase sempre algum tipo de carne ou derivado e, raramente, a cereais. Uma revisão bibliográfica* compilou, em 2010, 278 cães de diversos continentes, todos com alergias alimentares, o resultado foi:
  • Em 34% dos casos, as alergias deviam-se à carne de vaca;
  • Em 20%, devido a produtos derivados do leite;
  • Em 15%, devido ao trigo.
Em suma, 83% dos casos de alergia alimentar em cães, deviam-se a algum tipo de carne ou seu derivado (vaca, produtos lácteos, galinha, ovo, cordeiro, porco e peixe).
Para gatos, uma compilação mais modesta** foi também realizada, totalizando 56 gatos alérgicos: 80% das alergias eram provocadas por vaca, peixe ou lacticínios.

Bem, parece que o melhor então é ir para a cozinha fazer um canguruzinho cozido ou um fígado de cavalo cru, que isto das rações é uma confusão. Assim ao menos sei o que estou a dar.
Anda também para aí muito a moda da comidinha caseira e, mais na moda ainda, a comida crua, também apelidada de BARF. Não sou contra este tipo de alimentação, desde que formulada e, de preferência fornecida, por veterinários nutricionistas certificados e com acompanhamentos periódicos da saúde geral do animal. O problema é que, se estivermos a falar de comida crua, não podemos ignorar o grande risco que corremos em relação a intoxicações alimentares e perigos de bactérias contidas em alimentos não cozinhados. Se quisermos dar comida cozinhada, o mais provável é incorrer em erros de balanço nutricional e, mais cedo ou mais tarde, provocar-mos uma carência vitamínica ou de qualquer outra coisa ao animal. Não esqueçamos que, comida BARF vendida de forma comercial, pré-congelada, inclui sempre fontes de hidratos de carbono como frutas e vegetais e, pela conversa toda aqui em cima, já percebemos que, apesar dos cães conseguirem digerir estes nutrientes, eles não são essenciais para a sua sobrevivência.

Com isto conseguimos ter noção da quantidade, imensa, de opções com que os donos se deparam. Cabe aos vets formarem-se de modo a informar os donos acerca de qual a melhor opção para cada caso em particular e não se deixarem cair em modas ou pressões comerciais. 

Yep...

** Gaschen FP, Merchant SR. Adverse food reactions in dogs and cats. Veterinary Clinic North America Small Animal Practice 41:361-379, 2011.
** Guaguère E. Food intolerance in cats with cutaneous manifestations. PMCAC 28:451-460, 1993.
* Roudebush P, Guilford WG, Jackson HA. Adverse reactions to food. Em Hand MS, Thatcher CD, Remillard RL, et al. (eds): Small Animal Clinical Nutrition, 5ª ed, Topeka, Kan, 2010, Mark Morris Institute, pág. 609.
** White SD, Sequoia D. Food hypersensitivity in cats: 14 cases. Journal American Veterinary Medical Association 194:692-695, 1989.